Artigo – Lei da Ficha Limpa, 15 anos: avanços e contradições de uma lei necessária

No dia 4 de junho de 2010, foi sancionada a Lei Complementar nº 135, a chamada Lei da Ficha Limpa, fruto de um movimento de iniciativa popular sem precedentes no país, reunindo mais de 40 entidades da sociedade civil, lideradas pelo Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), com apoio da OAB e da CNBB. Seu objetivo era claro e direto: impedir que pessoas com condenações por crimes contra a administração pública e outras práticas lesivas ao erário pudessem disputar cargos eletivos.

A proposta foi recebida como um avanço moralizador, um filtro necessário no combate à impunidade. E, de fato, sua existência representou um marco jurídico relevante no cenário eleitoral brasileiro. Porém, a necessidade dessa lei nos leva a uma pergunta: por que o Brasil precisou criar uma norma para impedir o que já deveria ser um consenso moral óbvio?

A resposta parece estar na raiz da crise democrática que vivemos o povo não sabe escolher com base em princípios morais e na real capacidade dos candidatos. Ainda votamos por emoção, por um saco de cimento, uma dentadura, uma promessa de cargo comissionado ou por pura desinformação e não por consciência. Em vez de o eleitor rejeitar, por si só, políticos com histórico de corrupção ou envolvimento em crimes, foi preciso criar uma lei para barrá-los. A Lei da Ficha Limpa, no fundo, é uma tentativa jurídica de compensar a imaturidade política do eleitorado brasileiro.

Mais grave ainda é quando a Lei da Ficha Limpa, concebida para proteger a moralidade administrativa, passa a ser utilizada como instrumento de exclusão política, movida por narrativas e disputas ideológicas. Casos emblemáticos como os do presidente Lula e, mais recentemente, do ex-presidente Bolsonaro ambos tornados inelegíveis com fundamento na própria Lei da Ficha Limpa revelam esse cenário. Ainda que as decisões judiciais que fundamentaram suas inelegibilidades tenham seguido o devido processo legal, o debate permanece controverso, justamente por evidenciar o risco de distorção da finalidade da norma. A lei, criada para impedir o acesso de condenados à esfera pública, não pode se converter em mecanismo de manipulação do jogo político ou de silenciamento de adversários. Quando isso ocorre, perde-se a essência moral da regra, e a justiça eleitoral passa a operar sob o risco de interferência estratégica.

O que temos, então, 15 anos depois da Lei da Ficha Limpa, é um retrato ambíguo. De um lado, um avanço jurídico inegável, que respondeu à pressão legítima da sociedade. De outro, o sintoma evidente de um problema estrutural que é a incapacidade do eleitor de distinguir, por si só, quem é ou não digno de ser eleito para gerir a coisa pública. A existência da lei expõe, sem disfarces, a carência de maturidade política na hora da escolha, pois essa triagem deveria ser feita diretamente pelo povo, nas urnas, com base em critérios morais e na real capacidade dos candidatos.

Em uma democracia madura, a exclusão de maus gestores se dá pelo voto, não por decisão judicial. No entanto, é preciso reconhecer que, em um país marcado por desigualdades, a Lei da Ficha Limpa também exerce um papel de proteção ao eleitor mais vulnerável aquele que, sem acesso à informação de qualidade, está mais suscetível ao abuso de poder e à manipulação. Para esses, a lei funciona como um filtro mínimo de integridade, impedindo que figuras condenadas por corrupção ou crimes graves participe das eleições. Assim, por mais que a sua existência revele uma deficiência coletiva, a sua aplicação ainda é necessária até que a consciência do voto supere a imposição da lei.

Se fôssemos uma sociedade verdadeiramente consciente do valor do voto, essa lei sequer precisaria existir. Ter a ficha limpa deveria ser um requisito mínimo e inegociável de qualquer candidato, e não algo tratado como virtude ou destaque entre os demais. Não seria sequer necessário que uma lei dissesse o óbvio quem tem a ficha suja não deve disputar uma eleição, por ser naturalmente rejeitado pela sociedade.

Portanto, mais do que exigir ficha limpa dos candidatos, precisamos de uma consciência limpa por parte do eleitor. Uma consciência que saiba escolher com coragem, com responsabilidade, não por barganha. O futuro que sonhamos será construído no dia em que a moralidade não for imposta por norma, mas incorporada como valor inegociável por cada cidadão. Porque só haverá transformação real quando o voto for expressão de caráter e a urna, um espelho da sociedade que escolhe com lucidez, e não por conveniência.

Sobre o autor

Wesley Araújo é advogado, especialista em Direito Constitucional e Direito Eleitoral, atualmente mestrando em Direitos Humanos. Além de sua destacada atuação na advocacia, é também radialista e palestrante reconhecido na área de comunicação assertiva, onde desenvolve treinamentos, palestras e cursos voltados ao aprimoramento da comunicação pessoal e profissional. Atua como comentarista jurídico e político, unindo sua sólida formação acadêmica à habilidade prática de traduzir temas complexos para uma linguagem clara, objetiva e acessível ao grande público.

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