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Insegurança alimentar e laços familiares fragilizados: quando o transporte é um meio de buscar a sobrevivência

Por Diego Rios

23/05/2024


É bem verdade que o crescimento populacional e a expansão de cidades para territórios antes não ocupados, têm obrigado gestores públicos a repensar a maneira de administrar, principalmente partindo da máxima de que os serviços essenciais devem estar ao alcance de todos. Essa premissa vale, principalmente, para o transporte público.

Imagine ter que andar por quilômetros, em uma estrada de chão, em busca de um ônibus para ir até a Capital resolver questões bancárias, ou até mesmo para dar entrada na tão sonhada aposentadoria. Há ainda aqueles que utilizam o transporte, seja escolar ou coletivo, em busca de ter, ao menos, uma refeição diária, a tão propalada “segurança alimentar”, que, trocando em miúdos, trata-se do acesso pleno e regular a alimentos, de qualidade, em quantidade adequada e sem comprometer o acesso a outros itens essenciais, a exemplo do vestuário, da Educação ou da saúde.

Aliás, uma informação chama atenção e merece ser destacada nessa reportagem especial. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2023 (PNAD), divulgados no fim de abril deste ano, um em cada quatro domicílios brasileiros apresentou algum grau de insegurança alimentar em 2023, sendo que, cerca de 64,1 milhões de pessoas viviam nesses lares. Além disso, destes, 11,9 milhões enfrentavam situação ainda mais dramática e 8,6 milhões beiravam a fome.

Falar sobre os desafios do transporte coletivo com o desenvolvimento urbano, perpassa por repensar as condições humanas ofertadas a uma determinada parcela da população. Que tal um exemplo prático? Pois bem, vamos lá: Povoado Lavandeira, em Nossa Senhora do Socorro, distante 15 km até a sede do município e 21 km até a Capital, Aracaju.

O Portal Fan F1 esteve na localidade para narrar histórias de famílias que, apesar da pouca distância até os grandes centros, o abismo em que vivem parece ser ainda maior quando se chega a esta pequena comunidade.

Da beira da pista, na BR-235, pouco antes da entrada para a Fazenda Boa Luz, até o miolo do Povoado Lavandeira, uma verdadeira pista de rali, com enormes crateras e estrada de chão, onde as poças d´água dão o tom das recentes chuvas em Sergipe.

Por volta das 11h da manhã, debaixo de chuva, a equipe de Reportagem chegou até a Escola Municipal Anália Vieira de Figueiredo, estranhamente localizada na única parte pavimentada do Povoado Lavandeira, cerca de 100 metros de calçamento isolado no meio da localidade. Nesse momento, um ônibus escolar já aguardava alunos da Comunidade Capadócia, localizada em outra região de Nossa Senhora do Socorro, mas que estudam nessa escola.

Na saída dos alunos, em idade entre 4 e 6 anos, após fazer a seguinte indagação “agora vai para casa almoçar, não é?”, a resposta do pequeno João Gabriel é de cortar o coração: “não tio, eu já comi. Vou dormir. Agora só tomo café de noite”. Num papo rápido, devido à saída do ônibus, o garoto ainda confidenciou que quando não tem ônibus e precisa ficar em casa, a mãe dele vai buscar almoço na casa de uma tia que mora próximo. A esta altura, o motorista convidou a equipe a se retirar do interior do veículo, uma vez que as crianças já estavam todas embarcadas.

Para se ter ideia, um estudo inédito, feito pelo Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS) em parceria com a Fundação Maria Cecília Souto Vidigal (FMCSV), aponta que cerca de 10 milhões de crianças na primeira infância estão entre famílias de baixa renda, ou seja, com renda per capita de até meio salário-mínimo, o que representa 55,4% de todas as 18,1 milhões de crianças de 0 a 6 anos registradas no país, segundo dados do Censo 2022. Ainda segundo a pesquisa, aproximadamente 8,1 milhões delas estariam em situação de pobreza ou extrema pobreza.

Orientados por um morador local de que mais dois transportes chegariam para buscar crianças de Lavandeira, que estudam em Aracaju e na sede do município de Nossa Senhora do Socorro, fomos para o local indicado, desta vez o ‘Bar do Ivo’, que serve de abrigo para os estudantes se livrarem do sol e, mais recentemente, da chuva.

Fomos recebidos pelo proprietário, o Ivo, um senhor de quase 70 anos. Ele já foi desabafando e mostrando o antigo abrigo de ônibus, totalmente enferrujado e sem cobertura. “Vocês são ‘repórte’? Pois me diga se aí é qualidade de ninguém esperar condução. Aqui, ônibus de linha não tem condição de chegar. Os alunos foram se chegando e ficando aqui embaixo do meu bar, mas eu já aviso logo que aqui tem que ter respeito e que eu não aceito xingamento”, disse o dono do bar.

Não demora 10 minutos e chega o primeiro estudante. Carlos Henrique Santos, de 18 anos, aluno da Escola Rodrigues Dórea, no bairro Siqueira Campos, em Aracaju, que não quis muito papo, mas na pouca conversa, disse que tinha um irmão de 13 anos, o Genisson, e que morava no povoado com a mãe, a senhora Edileuza Santos, que está desempregada. Ele finalizou o diálogo após ser questionado sobre o pai. “Não tenho pai, ele sumiu quando eu fiz dois anos”.

Nesse instante, outros alunos também chegam ao Bar do Ivo, e um deles chama um pouco mais a atenção pelo seu sorriso tímido, olhar para o chão e sua forma corpórea, uma magreza incomum, o que aparentava se tratar de um adolescente de 13, 14 anos.

Ao iniciar um diálogo, em questão de segundos o menino deixou de ser adolescente para ser tratado como jovem após revelar a sua idade, um jovem de 20 anos, estudante do 8º ano na Escola José Freire da Costa Pinto, em Nossa Senhora do Socorro.

Jadson dos Santos mora no povoado com a sua avó, conhecida como Dona Zizi, e mais dois irmãos, Luiz, de 21 anos, e Vitor, de 16. Com a chegada do ônibus, a conversa teve que ser interrompida, mas a tempo de Jadson indicar a sua residência. Foi aí que partimos em busca de conhecer mais a história desse ‘garoto grande’.

Carro estacionado em frente ao local indicado, descendo por uma ‘ruazinha’ estreita com pouca grama, um beco. Mais adiante, uns oito casebres de aspecto humilde, e ao perguntar por Dona Zizi, um morador fez logo a indicação: “aquela senhora magrinha ali”. Uma residência com reboco apenas na frente e lá estava ela, uma senhora negra, de sorriso fácil e uma doçura que só as avós possuem.

Após as apresentações iniciais e revelando o diálogo com Jadson, Gildete dos Santos, conhecida como Dona Zizi, vai logo dizendo: “Ele é calado, só anda pelo mundo, só aparece na hora de ir pra escola. Tirando isso, ele só ‘veve’ pelo mundo”, diz a avó, que estava acompanhada pelo neto mais velho, Luiz, irmão de Jadson.

Questionada sobre a história dos meninos, Dona Zizi não fez arrodeio. “Meu filho se separou e a mãe deles foi embora, eles não tinham para onde ir, ficaram mais eu. O pai arrumou uma mulher, lá para o lado do Cardoso (Povoado), e foi morar com essa mulher, mas essa mulher disse que não queria os filhos dele, aí ficaram comigo. Eles já estavam grandinhos, não estavam pequenininhos mais, aí não foi tão difícil. O pai faz umas comprinhas e traz para me ajudar, porque só tenho a minha aposentadoria”, contou a senhora.

Foi aí que entramos no quesito alimentação e Dona Zizi explicou como era a dinâmica. “Eles chegam alimentados, já de noite, e aí é uma comida a menos para dar. Ele (Luiz) almoça aqui, come na escola, mas quem disse que ele chega sem fome? Quando ele chega aqui, torna a comer de novo. A vida não é fácil. Criar esses três meninos sem mãe, uma coisa é com a mãe, outra coisa é não ter a mãe por perto. Ela mora lá pra Aracaju, às vezes ela vem na casa da mãe dela, mas nem aqui vem olhar pra os meninos, mas ela não liga não. Eles foram educados por mim. Esse daqui era o maior de todos. Mas, eu sempre de olho. Esse maior que faz comida pra os outros”, disse Zizi.

Já passava de 1 da tarde e não era possível sentir o cheiro de comida pela casa. Sentado em uma cadeira na sala, sem reboco, Luiz, estudante do 2º ano do ensino médio do Colégio Severino Uchôa, em Aracaju, iniciou um bate-papo após ser questionado sobre a rotina. “Saio 6h30 da manhã e como na escola, comida gostosa, como quando eu chego lá e o almoço eles dão 9h30, aí eu como de novo. Mas, quando eu chego em casa, perto de 1 hora da tarde, já estou com fome de novo, mas é menos fome”.

Aproveitando o gancho dado no início da conversa com Dona Zizi, que disse que Luiz cozinhava para os irmãos, perguntamos o que ele sabia fazer. “Eu sei fazer arroz e feijão, faço para a semana toda”, disse orgulhoso. Indagado sobre o que come de acompanhamento com o feijão e o arroz, a famosa mistura, Dona Zizi interrompe a conversa e ela mesma responde. “Galinha, ‘sosicha’ (salsicha), salame, ovo, ‘quarqué’ coisa”. Carne, pelo visto, por lá é artigo de luxo.

E continuamos as perguntas a Luiz: você quer seguir uma profissão quando terminar o segundo grau? Fazer uma faculdade? Ele responde: “Ainda não sei o que vou fazer quando terminar o segundo grau. Vou procurar um serviço”, e mais uma vez é interrompido pela avó: “O pai dele trabalha naquela fazenda ali”, como que indicando que o neto deve seguir os rumos do pai.

O diálogo prossegue com a pergunta se o jovem nutre algum sonho. “Um sonho?”, rebate Luiz. A avó incentiva: “fala!”, mas o neto não responde, como se a vida já tivesse lhe dado muito. Incentivado pelo repórter: “você não sonha nada? Você não sonha morar em outro lugar? Ter uma bicicleta, uma moto, ter um carro, ter uma casa, o que você sonha?” Nessa hora, Luiz responde timidamente: “morar em outro lugar eu sonho”. Um sonho que soa como uma espécie de libertação para um jovem que a vida tirou as brincadeiras de infância e o emancipou a adulto tão precocemente.

Já passava das 2 da tarde, então nos despedimos e seguimos na estrada de chão para pegar a BR-235 e voltar a Aracaju. Poucos metros antes de chegar à rodovia, encontramos um grupo de jovens caminhando na mesma direção, como se fosse em busca de transporte. Paramos para saber se estavam indo estudar. Uma delas, Iza Costa, de 23 anos, disse que estava indo para a casa da avó, no Conjunto Marcos Freire 3, em Nossa Senhora do Socorro. Ela passa a semana por lá, pois estuda na Universidade Federal de Sergipe (UFS) e é atendida pelo Benefício Estudantil Municipal (BEM), um programa de transporte coletivo regular para universitários, ofertado pela Prefeitura de Nossa Senhora do Socorro.

“Se eu ficasse aqui em Lavandeira não teria condições de fazer uma faculdade e dar uma vida melhor para a minha família. Somos de baixa renda e vi nesse programa da Prefeitura uma oportunidade de mudar de vida. Sem contar que, na UFS, como no ‘Resun’ pelo valor de R$ 1 apenas e já tiro o peso aqui de casa. O meu sonho é poder ajudar meus pais a ter uma vida menos sofrida”, disse Iza.

Cada história narrada nessa reportagem demonstra a grande importância do transporte na vida de diversas famílias Sergipe afora. Importância que vai muito além de apenas carregar passageiros, contribui de forma significativa para mudar destinos e, mesmo com todas as adversidades para manter toda a engrenagem do sistema de transporte, ainda assim, vale muito a pena.

INSUFICIÊNCIA ALIMENTAR EM SERGIPE
Segundo dados fornecidos pela Secretaria de Estado da Assistência Social e Cidadania (Seasc), com o objetivo de combater a insuficiência alimentar, 2.350 refeições são ofertadas diariamente no Restaurante Popular Padre Pedro pelo valor simbólico de 1 real. Em 2023 foram ofertadas 625.068 refeições, distribuídas entre almoço e jantar, totalizando em R$7.174.826,36 de verba investidas para atender a população.

Além disso, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que é do Governo Federal e incentiva a agricultura familiar, promove a organização produtiva e econômica no meio rural, ao passo que combate a pobreza extrema e garante o acesso à alimentação adequada e saudável. Em Sergipe, o PAA funciona por meio da modalidade Compra com Doação Simultânea, comprando o alimento diretamente do agricultor familiar e doando às entidades atendidas pela rede socioassistencial, pelos equipamentos públicos de segurança alimentar e nutricional, no intuito de ajudar as famílias em situação de insegurança alimentar e nutricional a terem acesso à alimentação de qualidade.

No ano de 2023 foram ofertados, durante os meses de setembro a dezembro, 324.163,08 kg de alimentos provenientes da agricultura familiar para 143 entidades, beneficiando assim 18.326 pessoas em situação de insegurança alimentar.

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