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“Comunidades quilombolas vivem encurraladas pelas cercas dos fazendeiros”, diz coordenadora da Conaq

Por Larissa Gaudêncio

17/01/2024


Joelso Félix, 54 anos, é descendente do território quilombola Desterro, no município de Indiaroba, sul de Sergipe. Às margens do Rio Real, cresceu ouvindo as histórias do avô, José Félix, um dos fundadores da comunidade. Fugindo da opressão de um engenho na Bahia, os irmãos Félix juntaram suas economias e adquiriram terras em Indiaroba, onde iniciaram uma nova vida.

A trajetória, porém, foi marcada por desafios. Segundo um relatório produzido por antropólogos, engenheiros e historiadores em parceria com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), com base no relato dos moradores, os Félix possuíam documentos das terras, mas foram roubados na década de 1950. Na mesma época, um fazendeiro, que comprou terras de um antigo morador, teria se apropriado de uma área muito maior do que o acordado.

O sonho da família Félix sempre foi recuperar seu território e preservar a herança quilombola. Um passo importante foi dado no mês passado, quando o presidente Lula assinou decretos de desapropriação de terras privadas no território de Desterro. Além disso, a comunidade quilombola Ladeiras, em Japoatã, também avançou na luta pela regularização fundiária.

Entretanto, a jornada ainda é longa. De acordo com Xifroneze Santos, da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), Sergipe possui 54 territórios quilombolas, mas apenas sete têm decretos de desapropriação. Outros dois acessam terras da União, mas não possuem o reconhecimento oficial.

 

 

A certificação do território de Desterro foi emitida em 2005 pela Fundação Cultural Palmares, e, em 2014, o Incra delimitou o território em cerca de 124 hectares. Atualmente, 33 famílias vivem na comunidade, mas, segundo Xifroneze, grande parte das terras foi apropriada por fazendeiros ao longo dos anos.

“As comunidades quilombolas vivem encurraladas pelas cercas dos fazendeiros. O Governo Federal e o Governo de Estado têm o papel de desenvolver a política pública de reforma agrária, que é desapropriar as áreas que estão na mão de fazendeiros e passar essas áreas para as comunidades quilombolas. Esse povo, muitas vezes, vive em situação de vulnerabilidade social e ainda em regime de escravidão dentro das próprias áreas”, afirma. 

Territórios quilombolas

Conforme definição do Incra, terras quilombolas são áreas ocupadas por grupos étnicos predominantemente negros, que se identificam por relações específicas com a terra, parentesco, ancestralidade, tradições e práticas culturais próprias.

Segundo Xifroneze Santos, a ocupação dessas terras depende, sobretudo, da organização social das comunidades por meio de coletivos e associações. Uma vez que o decreto é concedido ao território quilombola, a responsabilidade pela gestão do espaço recai sobre essas organizações, que devem utilizá-lo em benefício de toda a comunidade.

“As terras quilombolas são terras remanescentes de um povo que, ao longo da sua história, como pessoas que vieram de África, escravizados, tinham direito a esses espaços pela Constituição, e aí, com o passar do tempo, a gente buscou entender essa Constituição e se organizar para lutar”, destaca. 

Esse processo está diretamente ligado à preservação dos direitos, da identidade e da cultura das comunidades quilombolas, além de contribuir para a justiça social. O que antes era um território fragmentado por propriedades privadas transforma-se em um espaço de uso coletivo.

“Aquilo que era de uma pessoa para o uso em benefício próprio passa a ser de uso coletivo, onde beneficiará famílias, gerações. É uma área que vai ficar hereditariamente para o uso daquela população, para netos, bisnetos e todos aqueles que existem naquele lugar. Então tem um impacto social muito grande do ponto de vista da qualidade de vida de uma sociedade que vive à margem da pobreza dentro do seu próprio território”, reforça a coordenadora. 

Desterro e Ladeiras

A comunidade Quilombola Ladeiras fica na zona rural de Japoatã. Em 2010, segundo relatório antropológico, ela era formada por 272 famílias que pleiteavam um território tradicionalmente ocupado por seus antepassados. O território está dispostaoem um dos quilombos formados por ex-cativos que tiveram acesso à terra depois do fim da escravidão.

Já o território quilombola Desterro recebeu esse nome em homenagem à capela dedicada à Nossa Senhora do Desterro, padroeira daqueles que, como os Félix, foram forçados a abandonar suas terras para reconstruir suas histórias.

“Desde 2004 lutamos por essa oportunidade, e eu garanto que todos aqui estão felizes. As terras que o Incra está desapropriando hoje pertenciam aos nossos avós, mas não tivemos o direito de permanecer nelas”, afirma Joelso Félix, morador do território Desterro. 

Atualmente, a subsistência da comunidade quilombola é precária. Joelso temia que as novas gerações abandonassem o território em busca de oportunidades de trabalho.

“Alguns têm um quintal, outros um pedaço pequeno de terra, e há quem tenha apenas o chão da casa. Nós sobrevivemos da pesca, mas é muito pouca e quase toda para consumo próprio. Nossa renda vem do Bolsa Família também. Não conseguimos pescar para vender no mercado porque o rio é fraco e não sustenta a produção”, lamenta. 

Relatos como esse reforçam a importância da desapropriação das terras, explica Xifroneze Santos.

“Para os jovens, o acesso à terra representa a esperança de sustentabilidade e continuidade no território. Sem a desapropriação, nossa juventude fica desamparada, e muitos acabam saindo para buscar meios de sobrevivência em outros lugares”, afirma.

Além da burocracia envolvida no processo de desapropriação, ela destaca a constante luta das comunidades quilombolas contra os latifundiários e o agronegócio, que são forças predominantes nos territórios.

“O agronegócio é muito forte nessas áreas, e enfrentamos grandes empresas que dominam os territórios. Além disso, há a falta de apoio político. O processo de desapropriação passa por avaliações de deputados e senadores, e a maioria não apoia. Temos uma bancada muito pequena na Câmara que defende as terras quilombolas. Esses são os nossos maiores desafios”, conclui.

Processo de desapropriação

Segundo a coordenadora nacional de articulação das comunidades quilombolas, o primeiro passo para que a desapropriação seja decretada é  o reconhecimento da comunidade quilombola pela Fundação Palmares. Posteriormente, é elaborado um relatório antropológico – peça técnica que reúne informações fundiárias e cadastrais das famílias, bem como a caracterização antropológica, histórica, econômica e ambiental da área – e, por fim, é solicitado o decreto presidencial. 

“É uma longa história, um caminho longo, mas esperançoso. A partir do decreto de desapropriação, todos os donos de terrenos privados dentro das comunidades quilombolas serão indenizados pelo que beneficiaram dentro da terra. O Governo Federal repassa recursos ao Incra, que é o responsável por fazer pagamentos às associações que representam essas comunidades”, explica Xifroneze. 

Apesar de grande parte do processo ser de responsabilidade do Governo Federal, ela chama atenção para a necessidade de engajamento das esferas estadual e municipal na garantia de direitos das comunidades quilombolas. 

“Para fazer essa política acontecer na ponta, nos quilombos, a gente precisa ter essa parceria, os gestores precisam ter esse entendimento de que eles também têm os seus papéis para desenvolver dentro dos territórios quilombolas para garantir essa qualidade de vida”, conclui.

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