Produção artesanal do licor preserva legado familiar e fortalece empreendedorismo feminino

Foto: João Figueiredo

Quando chega o mês de junho a cultura nordestina é movida pelo São João. As ruas ficam coloridas com as bandeirolas, as roupas quadriculadas tornam-se quase que obrigatórias, o forró dita o ritmo do dia a dia, os grandes arraiás arrastam multidões, as quadrilhas encantam com as apresentações e as comidas típicas dominam a mesa das famílias.

No cenário festivo, também há protagonismo  para as bebidas, sejam os caldos ou  cachaças. Mas tem uma em especial que reaparece com força durante festejos juninos: o licor.

Mais do que o consumo, a produção artesanal do licor torna-se a oportunidade para empreendimento, representando para muitos sergipanos uma fonte extra de renda e ligação com a cultura popular.  Seja aquele empreendedor mais consolidado  no mercado ou quem ainda quer ampliar seus negócios.

Neste clima, o Portal Fan F1 conheceu a história de produtoras artesanais de licor no estado, que se mobilizam durante este período para, em meio a outras ocupações, destinar parte do tempo para o preparo da cachaça mais famosa da época.

Herança cultural e legado

O município de Itabaianinha, no sul do estado, conhecido como o polo moda sergipano, também guarda em seu território outras histórias que fortalecem a cultura regional. Foi lá que nasceu o  Licor Maria Bonita, bebida artesanal que, além do sabor, carrega o legado de um empreendedor em tradição familiar.

A história começa ainda na década de 70, pelas mãos de Etelvino Lima – sanfoneiro , deficiente visual em razão de uma catarata congênita, mas cheio de atributos. Astuto, ele usou a curiosidade e inquietude para empreender no ramo de bebidas.

Etelvino Lima nasceu em 1935, no próprio município de Itabaianinha, onde criou sua história. Foto: João Figueiredo.

As primeiras cachaças produzidas por Etelvino foram a Jurubeba carcará, a batida de jenipapo e a zinebra com aguardente. Somente no ano 2000 é que ele e a família investem seus recursos para a produção dos licores, nascendo assim o Licor Maria Bonita.

O patriarca e grande precursor do Licor Maria Bonita seguiu nesta jornada até 2021. Faleceu no dia 25 de junho daquele ano, logo após o dia de São João. A perda da grande liderança empreendedora comoveu a família, que sentiu a necessidade de se unir ainda mais para manter o projeto.

“ Essa época é muito importante para a gente e também um momento um pouco difícil. Há quatro anos eles nos deixou e nos deixou nesta época. Época em que a gente mais trabalhava, que mais levava a história dele. Todos nós somos apaixonados pela época junina”, comenta a filha Adriana Guedes, gerente de marketing do empreendimento e uma das filhas de Etelvino.

Hoje, seis filhos coordenam a produção e a venda dos licores. Unidos, guardam as memórias do pai e carregam na veia o sentimento em impulsionar a produção .

“Representa o legado dele, a força dele, tudo o que ele construiu, com todas as dificuldades. A união da família, ele conseguiu manter tudo aqui”, declara Luzia Guedes, filha de Etelvino que gerencia a parte administrativa do negócio.

Da esq. para a direita: Luzia Guedes, Conceição Guedes e Adriana Guedes. Irmãs envolvidas no empreendimento familiar Licor Maria Bonita. Foto: João Figueiredo

Para impulsionar a produção na principal época de vendas,  a família investe em torno de R$ 70 mil reais. “O foco maior é maio, junho e julho. Nós chegamos a produzir neste período cerca de 20 mil garrafas de licor. Nós costumamos distribuir este licor em várias cidades . Aqui na nossa cidade, como foco principal, e nas cidades vizinhas, como Tobias Barreto, Lagarto, onde temos alguns parceiros da venda de nosso licor. Temos também Aracaju, Boquim, Arauá, agora  temos parceiros em Areia Branca, então diversas cidades”, detalha Luzia.

Com sabores variados e cheio de memórias afetivas, o ‘Maria Bonita’  já é um nome conhecido para a época junina e atrai consumidores de várias partes do estado, como Kelisson Alves, cliente há mais de uma década. Todos os anos, quando chega próximo ao mês de junho, ele sai de Aracaju e vai até Itabaianinha garantir os litros da cachaça para fazer o forró da família e amigos.

“ A gente vem aqui no Maria Bonita porque são licores de qualidade, eu mesmo sou fã dos licor cremosos, que é uma delícia de verdade, sou fã do de maracujá, e aí todo o período junino a gente sempre vem, leva uma quantidade para Aracaju, que é pra gente ter durante o mês todo, pra ir tomando, e quando chega no São João mesmo a gente sempre vem para o interior e vem aqui comprar, porque a família toda gosta, a família toda leva para viajar, leva para os passeios, então é maravilhoso”, diz.

Um  espaço de memórias afetivas

Além do sabor, o espaço onde os licores são vendidos também encanta e permite uma visita ao passado. No centro de Itabaianinha, um casarão antigo de 50 anos,  de aparência rústica, com parede original de taipa e piso de barro. A materialização da cultura nordestina em um pequeno museu que reúne objetos antigos.

O local também conserva a herança cultural de Seu Etelvino, isso porque neste mesmo espaço  foi montada uma espécie de bodega, a qual conserva reúne uma série de objetos antigos, entre eles as próprias cachaças antigas produzidas por Etelvino, um baleiro e outras relíquias que fizeram parte da vida do homem que deu origem ao comércio.

O nome ‘Maria Bonita’, aliás, também não é por acaso. O fascínio nas histórias de Lampião motivaram Etelvino a pensar em uma combinação que trouxesse identidade à bebida artesanal com base na trajetória do cangaceiro.

O espaço é inspirado em bodegas antigas e imóveis históricos. Fotos: João Figueiredo

Entre tantos objetos cheios de memórias, o espaço age como um ponto de memória  afetiva, preservando a história de um empreendedor querido e conhecido na cidade. Seu José Antonio, que mora em frente ao Licor Maria Bonita, guarda bem as recordações.  

Foi por meio das produções artesanais e dos clientes que o empreendedor consolidou seus laços de amizade e pôde demonstrar suas principais virtudes, cultivadas  e lembradas por quem conviveu com ele durante muito tempo.

Em meio às lembranças, a família trabalha firme com o objetivo de dar continuidade legado de Etelvino ainda mais longe. “Os desafios são mais emocionais, que a gente queria muito que ele estivesse vivendo aqui. Mas ele deixou uma estrutura bem firme. A gente tem um discernimento bom para seguir a história do licor”, expressa a filha Luzia.

Com incentivo, nasce uma empreenderora

A realidade na produção e venda do licor é diferente para a corretora de seguros Vírginia Madureira. Baiana, moradora de Aracaju há mais de 30 anos, produz licor há pelo menos dez, incentivada pela família e amigos.

A produção ainda é caseira. Sozinha, mas decidida a entrar neste ramo, inicialmente produzia apenas seis litros. Uma década depois, com a produção avançando ano após ano, esta quantidade chegou a 150 litros.

Mãe e filha unidas pelo mesmo propósito de elevar esta produção. Foto: Matheus Costa

O início se deu a partir do gesto simples de um vizinho, o qual ofereceu frutas que trazia de um sítio. 

“Ele trazia do sítio o jenipapo, algumas frutas e coincidiu com o período junino. Aí eu disse, me deu um insight: vou produzir meu próprio licor esse ano. E aí fiz, para a família, e apoiaram”, relata a empreendedora.

O que começou pela curiosidade e pelo acaso ganhou força. E, semelhante à história em Itabaianinha, o licor da Vi, como é apelidado, também carrega o afeto familiar.  Carol Madureira, filha de Virgínia, é o braço direito da mãe, disposta a ajudá-la em cada desafio para seguir com o sonho.

“Então, na verdade, o nosso maior lema da Delícias da Vi é essa produção que é da nossa família para sua família, porque todo mundo aqui é tão envolvido com isso, e é um sonho que minha mãe tem, né? Ela tem essa coisa do aconchego, de cozinhar para muita gente, de levar esse afeto em forma de comida, e aí isso a gente, ela traduziu no licor também, então por isso que a gente fala muito desse propósito, que é levar um pouquinho da nossa família, um pouquinho do nosso aconchego para a família de quem está do outro lado também”, comenta Carol.

Além do toque familiar,o grande diferencial da produção de Virginia está na preocupação com o meio ambiente, ao reutilizar garrafas para armazenar a bebida.

Observando a falta de garrafas,  a ideia partiu da filha. Com apoio de amigos e donos de bares, ela e a mãe passaram a reutilizar garrafas de vidro para superar  a dificuldade da falta de embalagens. 

“ A ideia foi, pela falta mesmo da gente não ter tantas garrafas, dificuldade, a gente pesquisava no mercado para comprar, tinha dificuldade. Aí, como a gente tem muito amigo dono de bar, minha filha, Carol, disse minha mãe, a gente poderia ver essa parte com as garrafas. E aí começou, pesquisamos amigos, ligando com os amigos de bar e recicle”, disse Virgínia sobre a iniciativa.

A empreendedora aproveitou o incentivo de pessoas próximas para empreender com os licores. Uma atividade que começou por acaso, mas que hoje é tratado de forma especial por ela e pela família, que unidos carregam a vontade de crescer.

A produção artesanal em Sergipe

O licor é apenas um dos produtos que representam a  produção artesanal em Sergipe. A bebida  contribui para a geração de empregos e renda e sustenta tradições familiares.

“O licor hoje, ele faz parte, de fato, do arranhar junino, daquela confraternização junina, e eu acho que em todo lugar as pessoas têm essa degustação, têm essa procura, digamos assim, do produto chamado licor. E aí é uma gama de sabores aí, mas o licor é um produto muito bem aceito. Em todas as confraternizações juninas, as pessoas clamam, digamos assim, né? Pede para que tenha a presença do licor”, comenta Elayne de Dedé, diretora da Economia Solidária na Secretaria de Estado do Trabalho.

No estado, o artesanato vai além do licor, abrigando uma produção diversa que inclui a confecção de rendas e bordados, na cerâmica, artefatos de palha, esculturas e pinturas, mel de abelhas, castanhas, doces entre tantos outros.Todas estes produtos fazem parte da  economia solidária, modelo de produção que compreende uma forma de renda justa e que promove a valorização do trabalho e o desenvolvimento regional. “ As pessoas se preparam de verdade, isso faz com que aqueça muito a economia do nosso estado, economia solidária sergipana”.

A secretaria do Trabalho fortalece a produção artesanal em Sergipe. Foto: Matheus Costa

Para além da economia, a produção artesanal contribui para a propagação de valores e a manutenção de tradição passada de geração em geração.

“ É muito forte, mesmo com tanta evolução industrial, a inteligência artificial, mas ele nunca vai tomar… É o lugar, digamos, do método de fazer manualmente, da satisfação, do sentimento de pertencimento daquelas pessoas que estão ali produzindo e, às vezes, passa de geração em geração. Na verdade, é uma avó e aí as pessoas aprendem com a avó, com a mãe, com o pai, enfim, é uma cultura milena”, descreve.

A cada licor ou qualquer outra produção artesanal, Sergipe celebra a preservação da sua identidade e revela que tradição e inovação podem sempre caminhar juntas , fortalecendo a cultura popular no estado.

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