O mundo visto pela lente da cultura: o perfil de Aglaé D’Ávila Fontes

Quando o Centro de Criatividade de Aracaju ainda dava seus primeiros passos no atual bairro Getúlio Vargas, junto à comunidade da Maloca, de raízes quilombolas, houve quem compreendesse que o exercício da coletividade exige o conhecimento da própria história. 

Naquele momento, sensível à efervescente e rica cultura sergipana, Aglaé Fontes escreveu a peça teatral O Auto do Menino do Quilombo e conseguiu mobilizar cerca de 40 moradores na atuação. A produção artística tomou forma por meio do engajamento dos próprios cidadãos locais. Foi reescrita e transmitida a partir das vivências compartilhadas.

Esse movimento, segundo Aglaé, idealizadora do Centro de Criatividade, reflete sua visão sobre a cultura popular: um espaço de memória e história.

“Eu não tinha o desejo de chegar de mala e bagagem numa comunidade, eu queria que ela crescesse comigo, que ela fosse descobrindo o valor que ela tinha”

E como não se pode plantar palavras e colher prática, sua própria trajetória revela um compromisso contínuo com a compreensão da cultura como tudo aquilo que é produzido para que as pessoas possam construir suas existências.

Hoje, aos 90 anos, entre os arquivos e documentos que fazem parte da história e estão preservados no prédio do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe (IHGS), onde ocupa a presidência, Aglaé ainda observa o mundo com o mesmo vigor artístico que enxergou na Maloca.

A armação quadrangular dos óculos repousando sobre o nariz é quase uma metáfora: como se cada lente revelasse, com nitidez, o que muitos não enxergam: o mundo visto pela ótica da cultura.

Cultura em todo lugar ao mesmo tempo 

Adjetivos não faltam para descrever a personalidade multifacetada de Aglaé D’Ávila Fontes, nascida no município de Lagarto, em 1934. Professora, escritora e teatróloga, teve sua vida entrelaçada com a educação e as artes.

Criou uma escola de música para crianças, transitou pelos meios de comunicação como o rádio e a televisão, escreveu livros, fundou e dirigiu grupos de teatro, sempre colocando em destaque a cultura popular sergipana.

A educação que incorpora a arte como uma de suas principais aliadas foi, segundo Aglaé, moldada por experiências da infância. Filha de Marieta d’Ávila Fontes, dona de casa, e Teófilo Fontes de Almeida, funcionário público federal, conheceu a dor e a beleza de mudar de cidade várias vezes. Passou por Riachuelo e Itabaianinha antes de se fixar na capital sergipana.

“Isso teve um lado ruim, que foi uma criança se acostumar numa escola e, daqui a pouco, o pai se mudar. Mas também teve um lado muito bom, porque morando em várias cidades do interior, depois de Lagarto, a gente foi conhecendo a cultura daquelas regiões e minha mãe era muito sensível para isso”

Foi nessa verdadeira jornada de aprendizagem que os folguedos e a história das cidades despertaram nela o desejo de estudar a cultura sergipana. Das apresentações de grupos folclóricos nas festividades religiosas ou em datas comemorativas, surgiram os questionamentos que viriam a fundamentar suas pesquisas.

“Quando você vai ficando adulto, vêm as perguntas: ‘De onde é que veio isso?’, ‘Como é que esses costumes se incorporaram no território sergipano?’. Vou dizer uma palavra até muito sergipana, vem uma ‘futucação’ de ideias. Isso constitui aquilo que nós chamamos hoje, sabiamente, de identidade cultural. E eu estava interessada nisso”

Ao relembrar os pais, destaca que o incentivo à leitura e aos estudos foi fundamental para sua formação artística.

“Quando minha mãe me colocou para aprender música, isso foi uma coisa muito importante. Ela e meu pai eram pessoas muito ligadas a gostar de ler, a que os filhos estudassem. Eu acho que a arte é um dos elementos, seja ela de linguagem musical, teatral ou plástica, uma forma de descoberta do mundo. E quando você é fisgado por esses estímulos, a sua tendência é cada dia mais você aprofundar”

A partir daí, para compreender Sergipe, Aglaé nunca deixou de considerar suas manifestações artísticas, seus gestos cotidianos e suas histórias populares. Esse olhar atento começou a aflorar quando ela se fixou em Aracaju, em 1955, e fundou uma Escola de Música na capital sergipana, após concluir sua formação pelo Instituto de Música e Canto Orfeônico de Sergipe.

Mais tarde, ampliou ainda mais esse repertório cultural e intelectual com um bacharelado em Filosofia pela Universidade Federal de Sergipe e a pós-graduação em Educação Infantil.

Hoje, aos 90 anos, mas com a lucidez afiada de quem dedicou a vida ao saber, Aglaé integra a Academia Sergipana de Letras e a Academia Lagartense de Letras, além de presidir o IHGS. A apresentação de si, no entanto, é feita com simplicidade.

“Eu sou professora aposentada, claro, pela idade você já tá vendo, mas eu me chamo professora, porque eu sou professora a vida toda”

E é assim que ela se reconhece: professora, antes de qualquer título, cargo ou condecoração. Foi na UFS que construiu boa parte desse legado, após ser aprovada em concurso público para lecionar Psicologia da Educação, disciplina à qual se dedicou por décadas.

Essas experiências ganharam corpo, e palco, quando Aglaé foi convidada a idealizar um dos projetos culturais mais emblemáticos de Sergipe: o Centro de Criatividade de Aracaju.

O Centro de Criatividade

Localizado no Morro do Cruzeiro, no bairro Getúlio Vargas, na capital, o centro foi pensado como um espaço democrático, onde diversas linguagens artísticas se encontravam. Aglaé  fala com emoção desse tempo fértil em que arte e comunidade se tornaram indissociáveis.

“O centro era de uma efervescência muito grande, mas ele foi projetado para trabalhar com várias áreas, várias linguagens de arte. Como teatro de palco, teatro de bonecos, a música coral, música instrumental, todos os tipos. O Centro era realmente um espaço com 1000 possibilidades”

Foi lá, por exemplo, que ela escreveu e dirigiu O Auto do Menino do Quilombo, um espetáculo com forte raiz africana encenado por 40 moradores da comunidade local, muitos deles pisando em um palco pela primeira vez.

“Tinha 40 pessoas daquela comunidade que tomavam parte. Então, eles não só aceitavam o Centro, mas eles se integravam na sua totalidade, nos fazeres do Centro”

Mas para Aglaé, mais importante que implantar um centro cultural era compreender e valorizar o território onde ele se inseria. Por isso, antes mesmo da primeira oficina, realizou uma pesquisa profunda sobre a história e os moradores da região.

E essa é, talvez, uma das maiores lições de sua trajetória. Cultivar o território é também cultivar a identidade de um povo.

Educação artística transformadora

No terceiro mandato como presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe (IHGS), Aglaé D’Ávila Fontes caminha pelos corredores com a mesma paixão com que entrou ali pela primeira vez, em 2018. 

A presidência no Instituto é mais uma página de uma história repleta de protagonismo. Aglaé foi produtora e apresentadora do primeiro programa infantil no rádio sergipano, O Gato de Botas, transmitido pela Rádio Cultura, e ocupou funções de liderança em instituições fundamentais para a vida cultural do estado, como o já citado Centro de Criatividade, a Fundação Cultural Cidade de Aracaju (Funcaju) e a Secretaria de Estado da Cultura. 

Em 1978, estimulou a criação do Grupo de Teatro de Bonecos Mamulengo de Cheiroso, voltado à valorização das tradições populares nordestinas.

Depois de uma carreira dedicada à educação e à cultura, assumiu o desafio de preservar e valorizar a memória sergipana em um dos espaços mais tradicionais do estado.

A atuação de Aglaé no instituto vai muito além das funções administrativas. Com um olhar atento e sensível, para ela, a cultura não é um tema que deve ficar restrito a espaços de pesquisa. É parte essencial da formação do indivíduo, e deveria estar mais presente nas salas de aula.

“Eu acho que a escola não pode ser indiferente a isso. Eu acho que há muita falta de uma cultura sergipana na escola, para que a criança se habitue desde cedo a conviver com a literatura, através dos contos populares. Às vezes uma escola trabalha com temas muito fora do Brasil e se esquece que a gente tem uma cultura tão rica e tão diversificada”

No IHGS, a missão continua: ampliar o acesso ao conhecimento e, sobretudo, construir pontes entre gerações.

“Eu tenho um carinho muito especial por essa educação voltada para criança, eu também estou contando a história do meu jeito com brincadeira, com música, porque se você não alicerça nada na infância, você não pode cobrar do adulto. A escola é muito responsável por essa questão de conhecimento. O conhecimento é uma coisa muito importante”

Aglaé conta que a vontade de pensar, criar e compartilhar ainda se mantém viva, mesmo com as limitações físicas que a idade começa a impor. Por isso, ainda deseja colocar muitos projetos em andamento.

“Eu ando com algum problema, por exemplo, no meu joelho, mas a cabeça tá boa. Então eu quero aproveitar cada vez mais enquanto a minha cabeça estiver produzindo”

Com essa intenção, aparentemente simples, Aglaé reafirma sua missão: fazer da cultura um instrumento de pertencimento, e do conhecimento, um caminho de liberdade.

“Eu digo que o sergipano tem que ter orgulho da origem dele, da história dele e buscar cada vez mais a sua identidade. Isso aí só se tem com conhecimento. Então, estudar e pesquisar, para mim, é a coisa mais importante da vida”

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